escrito a corpo
A fórmula do teu amor interessa quando é para o escrever no teu corpo
Depois vou ler devagar
Vou desenhar com os dedos todas as letras
Vou devorar com a boca todas as palavras
Depois, devagarinho viro a página e tateio
Uso sentidos que não fazem qualquer sentido
Sinto sentidos que te faço sentir
Arrepios que me deixam gelado de calor
Lábios a garfo e faca
Massas de cabelos escuros que deixam ver só um bocadinho de sílabas
Sí-la-bas
Sons
Coisas em par como nós, como o corpo que se fez de corpos
1+1=1
A fórmula do meu amor interessa quando é para o escrever no meu
Liquidez nas expressões, escrevemos neologismo e ficamos sem ar para os dizer
Escrevo o meu amor no teu corpo, escreves o teu amor no meu, escrevemos o nosso amor no nosso, é isto?
Química. Bendita sejas, química.
O2, OS2.
O-S-2
Os dois
Cheira a coisas selvagens
Sempre os dois
Para sempre os dois
ONDE VAIS NA ESCURIDÃO?
Onde vais? Que procuras?
Onde vais tu nesse breu, em possibilidade e cantos e crateras que não vês nem sabes
Onde vais? Onde queres chegar?
O céu não está presente. O inferno não está lá, está? Onde vais na mais negra escuridão?
Há inacreditáveis espessuras entre ti e a luz, sentes silêncios e criaturas que anseiam pelos teus passos, que te saboreiam e extasiam-se na tua dúvida
Qualquer que ela seja. E hesitas. Perdeste-te, estás perdido, perdemos-te, perderam-te
Sabes onde estás? Sabes o que ficou para trás, mas essa luz diluiu-se nos éons relativos e incertos, agora restas-te tu e sabes que não te chegas
PERDER PELA VIDA
Perder pela morte rege-se por instruções naturais
Forças universais muito além de todo o poder que consiga concentrar em mim
Resta-me dor sem consolo
Resta-me tempo sem esse lugar preenchido
Luto no luto até as memórias que me aquecem, serem maiores que a saudade que me destroça
Perder pela vida é equívoco
É falso e ficcionado
Rege-se por percepções, ilusões, narrativas assumidas e realidades tão possíveis como possíveis de alterar
Perder quem amo pela morte é matar também a esperança
Perder quem amo pela vida é por lenha num fogo de desespero que não apaga, nem com toda a água de todas as lágrimas
Perder pela morte é aceitação
Perder pela vida é ressentimento
Perder quem amo pela morte é ter de acreditar
E mesmo que 21 gramas fiquem para a eternidade, ter certezas
Perder pela morte é absoluto, escuro, finito
Perder pela vida é um fim de dia, perdido sem saber se há outro a seguir
É morte viva, é uma porta que abre mas por onde não posso entrar
Perder quem amo pela morte faz parte da vida
Perder quem amo pela vida faz parte da morte
NOMES QUE CRESCEM
Gosto dos nomes que crescem
Que somam os nossos e são novos
Como a lua e os icebergs e os azuis e os sabores
Ou um peixe a beijar uma árvore, uma árvore que morre como nós
Gosto dos teus novos
Não gosto dos teus velhos
As plasticizas são plásticas mas não são elásticas, como os elásticos o são um mas não são ou outro
Não gosto de plásticas nem de suásticas
As coisas são não coisas
As coisas vivem quando pensas nelas
Ou então vivem quando elas pensam nelas, se estas coisas puderem pensar
Mas penso que nunca vou saber se pensam
Gosto de coisas que pensam
Mas também gosto de coisas que não pensam
Gosto de não gostar de coisas
Como um peixe a beijar a lua
Gosto dos nomes que crescem
Não gosto dos que depois de crescer morrem
Ou dos que depois são outros
Como um peixe a beijar o ar
Gosto de poesia
Não gosto de poemas
Gosto de coisas que rimam com melodia mas não gosto de coisas que rima com teoremas
Gosto de teoria
QUE SE FODA O SILÊNCIO
Estabilidades instáveis
Tento
Vivo o eu com surpresas
Gosto da intranquilidade mas procuro o contrário
Não consigo
Consigo contigo. Consigo comigo
A vida tem outros planos e nem sempre são os mesmos que os meus
Ajusto tudo
Tento encaixar num mundo com graça, sem graça, com desgraça
Num mundo que não é o meu
Onde só nasci porque alguém o quis
Num mundo que é lindo para além de nós
Será que sem mim também?
Todas as memórias vão dar ao mesmo
Todas
Parece que das incontáveis vidas que vivi, só houve uma
Só há uma
Sei que não é verdade
Mas na minha loucura por esse passado não vejo outro futuro sem ele
Ouço música, ouço muita musica, faço música, sou música
Quero partilhá-las
Ouve-as tu também, ouçam-nas todos
Porque o silêncio dói
A quietude agonia, não há vida onde não há som
A solidão não é minha, é tua, é de quem a quer
Fui feito para amar sem amor
Fui feito para doer sem amor
Fui feito para querer sem amor
Fui feito para viver sem amor
Que se foda o amor
Que se fodam as hormonas que me perturbam
As minhas e as tuas
Que se foda foder
Que se foda querer
Que se foda a poesia e que se foda este poema
Odeio o que não tem amor
Mas odeio mais o amor
COLECCIONO-TE
Somo os cabelos parecidos, escuros, longos
Adiciono olhos que façam lembrar
Ponho peles morenas na mistura
Mais lábios bem desenhados que têm de ter a cor certa
Depois são os corpos, os movimentos, os gestos de uma e os trejeitos de outra
Recolho os cheiros mais idênticos com a tristeza de nenhum ser igual
Coleciono tons nas vozes delas e atitudes e sons
Junto roupas e estilos, graças e maneirismos nas palavras ditas e também nas que são escritas
Provo sabores que a nada sabem
Retiro olhares e toques aqui e ali
Estou atento a loucuras, a feitios, a gostos e desgostos
Insisto e misturo, combino e recombino
Mas não
Não chego à unidade perfeita que amo ainda antes de começar a amar
SÓ O PASSADO É MEU
Não sou dono do hoje
Tudo será resultado da indecisão e do acaso
Nada mando no amanhã
Tudo será resultado de hoje e da fortuna
Mas assim que se tornam ontem, aí são meus
Frutos do que fiz
Filhos do que pensei
Produtos do que criei
Inevitáveis consequências de como agi e reagi
Histórias do que se passou e senti
Do prazer e da dor
Dizem os novos pensadores que o passado não interessa
Mas ele é o meu domínio
É nele que me fiz
É dele que sou feito
É onde aprendi, onde me apaixonei e amei, onde construí e onde também destruí
É nele que fiz filhos que nunca ficam verdadeiramente feitos
É nele que eles ainda são crianças e onde até eu sou criança
O presente nada diz de mim
O futuro pouco poderá dizer
Mas o passado, o passado é meu
E nada nem ninguém mo pode tirar
NESSAS PAREDES
Entre as areias finitas está tudo o que jamais pensei
Tudo senti por aí, mas tenho sempre de estar presente
O mundo é meu quando estás
Aqueles relâmpagos com as janelas abertas
Meias luzes, meias luas, meias lutas, meias velas
Somos a meias
Por entre nós nem ar passa
Vácuo
Olho para o que aqui não está e vejo
Vejo e todos os arrepios são velozes
Demasiado rápidos para mim que desapareço
Porque em todas essas paredes, há prazeres escondidos
Demolidas de factos ou razão
Que interessa isso quando tantos brilhozinhos há muito apagados, estão agora e desde sempre?
O esquecimento é daquelas coisas que só existe quando deixa de existir
NÃO SOU SUFICIENTE PARA ME ENCHER
Estou farto de estar farto
Estou farto de estar farto de estar farto
Farto que tem um irmão gémeo, o farto
Um é cheio e o outro vazio
E eu estou cheio de vazio
Farto de vazio
Quando era criança e aprendi a palavra fartura, não era isto que imaginava
Essa que também tem uma irmã gémea
Uma era feira, e musica e alegria
Era gorda
A outra também era gorda, cheia e boa
Era boa quando eu era criança, antes de ficar farto de tanta fartura de vazio
Quando era criança tinha muitas férias
Tinha fartura de férias
Mas não ficava farto delas, pois não avô?
Tinha fartura de amigo e de amores não era avô?
Tinha fartura de beijos escondidos e de mimos dos avós, lembras-te avô? Lembras-te avó?
Agora estou farto
Farto de não ter fartura
Farto de ter fartura de nada
ESMAGAMENTO
Esmagamentos rítmicos e contractivos que me destroem matéria por excesso de tudo em menos que milímetros cúbicos e quadrados
Desconcentrarão manipulada e automaticamente imposta, pela qual não dou nem sinto
Revolta surda e histérica, que esperneia por aí como peixe retirado ao seu meio, sem pernas para o fazer e doer
Sentimentos de versos e perversos nada que não esperasse, nada que me dê esperança ou vaidade, supremacia ou realidade inventada
Crença na descrença de tudo o que criar na surdina imensa de falta de luz perversa, constante, como a teoria das cordas
Uma vez vi deus mas não era
Era um homem ou uma mulher ou um animal ou uma pedra, tacho num lume frio a cozinhar na pressa
Essa coisa que era ou não era
Tudo são todos, todos não é tudo, eu não sou todo, tu não és tudo, acredito porque quero ou escolho fazê-lo, ainda que os tijolos da edificação estejam tortos ou desalinhados, fragmentados ou já nem estejam lá
Não sou vítima de nada a não ser disto de estar confinado entre quantidades brutas de labirintos também brutos, cheios de palavras brutas que nada mais fazem que estar ali, a irradiar outros percursos que perdem sentidos
Puro como o vazio de um Tupperware sem tampa, onde tudo o que pus se estragou e nada mais pus para não se estragar
O tempo expande como um vírus fatal, depois pára, depois retrocede como um cavalo tem de ser treinado para fazer, porque não é natural como a lua, o plástico e a riqueza, a maternidade e os filmes e os livros de papel ou de vozes
‘Da opulência pode sair eficiência ou deficiência’, dizia um sábio de uma rede social, que nada sabia de uma coisa, ou outra ou outra, mas que não estava errado
O erro é apenas uma nota fora de tom, que no fim da melodia deixou de ser importante
E tu mulher? Do que és feita? O que fazes? Construiste a terra que pisamos, inundaste o mar onde nadamos, plantaste as árvores que nos dão o respirar e pariste-nos a todos e partiste-nos a todos e nunca mais és a Deusa porque esperamos, a cisma que a fé de tudo precisa para o que esmaga curar
PARTE ARTE
Parte partido
Parte inteiro
Parte do princípio ou do meio ou do fim
Parte emoção, parte razão
Parte com muitas partes
Parte mão, parte corpo
Parte a cabeça
Parte telas e tintas e pincéis e palavras e papel e teclas e cordas e vozes e pedra e metal e ecrãs
Parte matéria e parte espírito
Parte cor e parte som e parte toque
Parte a alma
Partidas são parte chegadas
Parte o coração
Parte daqui e dali
Parte tudo
Parte de ti é arte
A vida é parte arte
Parte de ti partiu
máquina do tempo
Acelero por palavras em feitos e afazeres
Travo em tascas de memória e lá me encontro
Rabisco políticas indeléveis em guardanapos de liquido derramado
Azulejos de vidas, geometricamente imperfeitas que se seguram em raízes insustentadas
Carrego nos botões das playlists remotamente accionáveis e escuto, e vejo, e sinto
Vejo tracejados incessantes que não definem forma nenhuma
Fel no copo, doce no sabor, veneno na alma de todas as que tive
Estabelecida que está a expansão, fica determinado que implodimos no saber, polido e brilhante, como um pedaço de carvão não sujeito a pressões
Por entre toda a água do universo, as gotas que caem agora do céu não são deste mundo nem de nenhum outro
Ali pararam, móveis, uma e outra e outra e outra, num bailado imperceptível aos seres de que sou parte
A empatia que crio não quero
A simpatia que tenho não nutro
Os nutrientes que descarrego em disquetes de palha, regados a vinho tinto, não tomo
Há estática em todas as rádios e nada se pode
Obedece, cumpre, faz o que te dizem, dizem
E eu não faço
DESCENSOR
Sou um mecanismo elaborado, complexo nos meus princípios simples
Tenho função bipolar
Subo
Desço
Subo e carrego almas alheias, corpos bem postos, compostos e decompostos
Desço sozinho
Travo o movimento descendente
Subo em contradição e engano
Desço com a ajuda de anjos, sem ilusão ou encanto
A gravidade deste movimento contrário
Acelero para cima
Desacelero para baixo
Desacelero para cima
Acelero para baixo
Paro
Param-me
Nunca quando quero parar
Paro quando assim é ditado pelas sumidades que me apelam
Primem os meus botões
Ativam-me e desativam-me
Abrem-me e fecham-me as portas
Confundem e definem os patamares
As cargas são distintas, únicas, hipócritas, críticas
Carrego-as com poesia
Largo-as com desdém
Para cima e para baixo, num movimento ciclíco mas não ritmado
Constante
Sem descanso
O MEDO
O medo que o medo faz é o medo de o ter
Ter medo é bonito e fluído, não fica pelo medo, continua
O medo é bom
Sem medo não há risco e sem risco não há desenhos e sem desenho não há planos e sem planos não há medo
O medo é lindo, é professor , agricultor e cientista
O medo miudinho é o da paixão
O medo muito grande é desafio e tortura e ciúme e violência
Ter medo é feio quando o medo é o medo das outras ideias
O medo é barulhento ou pelo menos ruidoso
Incomoda
Ás vezes o medo apanha-nos de surpresa e ficamos com medo de ser apanhados de surpresa
O medo é parvo
Quem tem cu tem medo, mas um homem não tem cu, um homem não tem medo
Ter medo é viver e viver sem medo não é vida
O medo é música tímida, poesia secreta, olhares escondidos
É a mais linda história do mundo nunca ser escrita e o amor de uma vida nunca ser amado
O medo é sobrevivência e sobremorte, é prémio Nobel ou ferrugem
O medo não é humano, é de cá, da Terra
O medo é instinto e ansiedade, é vontade, intolerância e amor, verdade e mentira maior de todas as falsidades
É multi-dimensional como o tempo e o espaço e eu e os meus medos
O medo é sim ou o medo é não
O medo impede-me
O medo inspira-me
O medo é uma merda
Mas é ótimo
O medo é perfeito
Dedicado à minha filha Mar
SUBTRAÇÃO
O profuso e altíssimo valor acrescido que se adiciona ao valor que o valor tem
Ofusca respeitosa e verborragicamente qualquer intenção prosaica do valor ser o valor que é
O valor que até então valia ofusca-se perante tal brilhantismo
Vale-se agora do que era por entre valiosas contribuições, que acrescem ao valor, um valor dito superior, quando observado com falso rigor, da perspetiva que urge o criador vê-la
O valor tem validade, é valioso e virtuoso, mas nunca tanto como a introspecção profunda e semiológica que reconhece valor ao valor mas embala-o numa sábia bula oportuna, adequada e de uma excelência rara intencionada, desprovida de beleza
Valores moribundos erguem-se de trás e envolvem o intrínseco num circo de percepções talhadas em carvão prensado
Das premissas do silogismo, valor mais valor agregado igual a menos zero
O que era deixou de ser
O que valia deixou de valer
Na simplificação dos mais virtuosos e valiosos temas há uma verdade que ressalta e atinge
Que transforma
Na sua elaboração peca o erro
Erro que se quer farto e gordo, inchado e bonito
Que coisa feia que é esse erro
E as gentes o repetem, enquanto buscam em agonias ansiosas, a bóia de valor de verdade, que os há-de salvar
esse último momento
Esse último momento
Tomara que o soubera
Teria pedido ao tempo
Que o deixasse em espera
solidão
Quando a solidão aperta, perdemo-nos em músicas que têm memória
Choramos a ver filmes de classe B, C e D
Escolhemos mudar de sexo, de género de identidade
Queremos fugir para outro lugar, outro país, outro mundo
Falamos do gato. Dos gatos e do cão. Dos gatos do cão da tartaruga e do canário
Escolhemos filmes de fazer chorar ou fazer rir ou fazer chorar a rir ou fazer rir a chorar
Tomamos resoluções absolutas e peremptórias, assumimos a capitania das nossas naus perdidas e incomunicáveis
Quando a solidão toma conta escolhemos quem amar, quem recordar, quem odiar
Escrevemos e cantamos, cozinhamos e publicamos fotografias do que estamos a cozinhar
Temos esperança
Temos desesperança
Queremos ser quem não somos, o que já fomos
Imaginamos como queremos ser
Quando a solidão toma conta, vemos fotografias dos filhos, dos amores, de férias que foram e muitas coisas que nunca vão voltar a ser
Escolhemos ter passaportes em dia, dinheiro na conta, gasolina no depósito de um enorme vazio que não faz combustão
Recordamos
Criamos
Inventamos histórias, umas que foram, outras que podiam ser
Temos dores. Temos pena de nós, declaramos guerras ou proclamamos armistícios
Não temos paz
Seria de esperar que quando a solidão toma conta, tivéssemos paz
Escolhemos a paz armando as suas armas
Os seus medicamentos e nós ou parapeitos que deixamos
Quando a solidão toma conta, aperta tanto que ficamos vazios
o pedinte
O pedinte pede
Tem fome e pede
Tem sede e pede
Tem vergonha e pede
A fome e a sede mata-as a pedir
A vergonha mata-o por pedir
O pedinte dorme sem sono
Encontra paz no dormir
O pedinte pede sonhos onde não tem de pedir
O pedinte come o fumo de uma beata
Bebe a saliva que se acumula no filtro
O pedinte pede